CARAVELAS
Por João Lara Mesquita, publicado no site
mar sem fim/Jornal Folha de São Paulo.
O
Brasil deve um favor a elas.
Está na hora de conhecê-las
“Foi a partir das experiências feitas em barcos de pesca
construídos pelos ‘fatimidas’ nos célebres
estaleiros muçulmanos da ilha de Rawda, no Nilo, onde hoje fica
a cidade do Cairo, que os carpinteiros árabes devem ter construído
o primeiro cárabo latino de pesca que, através de simples
adaptações do aparelho (sistema vélico) e pouco
mais, deu lugar às caravelas latinas, sabiamente aproveitadas
pelo Infante D. Henrique (Saiba mais sobre o Infante). Mas a vela latina
triangular já existia no Egito, quando os árabes aproveitaram
para aparelhar o seu cárabo de pesca.” Assim escreveu José
Quirino da Fonseca, em As Origens da Caravela Portuguesa.

Caravela reconstruída em Portugal, réplica
das que vieram dar na Bahia.
Os
barcos que vieram dar nas costas da Bahia há muito já
existiam. Foram, apenas, melhorados pelo gênio lusitano, que adaptou-os
para o seu périplo marítimo entre os séculos 15
e 16.
A
invasão da Península Ibérica pelos mouros
A invasão da península Ibérica começou a
partir de 711. Tropas muçulmanas oriundas do Norte da África
cruzaram o estreito de Gibraltar, penetrando na península Ibérica
onde ficaram até 1492.

Ilustração: http://www.causamerita.com/
Todos os historiadores lusos, incluso o maior, Jaime Cortesão,
não se cansam de explicar que foi a partir deste movimento que
os portugueses avançaram na ciência náutica como
um todo, especialmente na arte da construção naval.
Os
avanços náuticos dos lusos através de sua convivência
com os muçulmanos
“Os mouros foram a cadeia transmissora das técnicas e saberes
orientais para o Ocidente,” escreveu Quirino da Fonseca. Cortesão
foi além. Em sua obra máxima, Os Descobrimentos Portugueses,
assim explicou a influência árabe: “os descobridores
portugueses sulcarão os mares em caravelas, e ao ‘pesar
o sol‘ (mediar a altura do astro) para saber a ‘ladeza’
(latitude) dum lugar, farão girar a alidade do astrolábio
e consultarão o almanaque para conhecer a declinação
solar. E nestas palavras ouvirão o eco da cultura (referindo-se
à cultura que os árabes trouxeram) dum povo que agora,
combatem, mas cujos ensinamentos, sem o saberem, testemunham a cada
hora.”
Astrolábio,
alidade e almanaque
Todas as palavras grifadas foram invenções dos árabes,
como o astrolábio, ou conceitos que eles trouxeram do Oriente
para o Ocidente, acelerando o conhecimento luso.
Os
árabes também foram influenciados por outros povos navegadores.
Jaime Cortesão:”… a multiplicação e
o fracionamento do velame, progresso imenso, que se estendeu ao Mediterrâneo,
durante os últimos séculos da Idade Média, provavelmente
sob influência dos árabes, que o haviam recebido dos chineses.”
Barcos
que precederam as caravelas portuguesas
Mário de Vasconcelos e Sá, capítulo A Arquetetura
Naval dos Séculos 15 e 16, do livro, O Século dos Descobrimentos:”Os
primeiros achamentos no tempo do Infante D. Henrique, foram realizados
em barchas, barcas, e barinéis.
A
Barca
desenho de barca, ou barinél,
barcos que deram origem as caravelas portuguesas
Já imaginou dobrar o Bojador num tróço destes?
(Ilustração:http://wwwblogdidi.blogspot.com.br/)
“A barcha em que Gil Eanes cometeu a proeza de passar o Cabo Bojador,
em 1434, tinha uma só coberta e um só mastro. Com vela
redonda e cesto de gávea. Teve origem nas nossas barcas costeiras
como se vê no Chafariz de Arroios, em Lisboa, sem castelo, com
um só mastro para vela quadrangular.” imagem
de Barcha, barco que deu origem as caravelas portuguesas

Eis o relevo mencionado e a Barcha (Foto:ruasdelisboacomhistria.blogspot.com).(Ilustração:http://wwwblogdidi.blogspot.com.br/)
Cárabos mouriscos
“No século 13 a palavra caravela, no sentido de barco de
pesca e transporte, tal como os cárabos mouriscos (aportuguesamento
do grego ???aß??, um barco ligeiro usado no Mediterrâneo),
aparece por três vezes, já no foral que D. Afonso III,
em 1255, doou à Vila Nova de Gaia. Palavras do historiador Mário
de Vasconcelos e Sá.
desenho
de um cárabo, barco mouro que inspirou ascaravelas
(ILUSTRAÇÃO)
Mudanças no casco
Vasconcelos e Sá explica as modificações impostas:
” o casco foi alterado na largura e comprimento. O fundo era pouco
mais estreito que o dos navios redondos, e o casco, provido de esporão,
era como as galés e os navios a remos. Não tinha castelo
à proa, ao contrário da galé.”

desenho de galé que viria
a influenciar as caaevlas portuguesas A galé (Ilustração:https://pt.wikipedia.org/wiki/Gal%C3%A9)
Continua Vasconcelos e Sá, “na forma e proporção
do comprimento e de boca do casco das caravelas foram felizes os portugueses.
Pois que, opondo menor resistência à deriva, maior facilidade
tinham de virar, como se tratasse de navios de remos. Assim se explica
o motivo por que esta forma de casco, aliado ao aparelho, permitia virar
rapidamente de bordo, com segurança e facilidade.”
Repúblicas italianas também dão sua contribuição
a Portugal
Jaime Cortesão: “São de sobra conhecidas as relações
entre a marinha portuguesa e a escola náutica e cartográfica
de Genova, personalizada de princípio pelos almirantes genoveses
que reorganizaram, no primeiro quartel do século 14, a marinha
de guerra portuguesa.”
As
primeiras caravelas portuguesas
E assim, como essa mistura que remonta a quase todos os povos navegadores
antigos, nasce, aos poucos, a caravela. Depois de seu uso inicial, ela
continuou a passar por modificações, desta feita em razão
das observações dos próprios lusos.
A
Caravela: origens do tipo de vela
Sabemos que o sistema de velas veio dos muçulmanos. “Uma
das principais características dos barcos muçulmanos estava
na vela latina triangular, no que diz respeito ao Mediterrâneo.
Quanto ao tipo usado no Golfo Pérsico e Mar Vermelho, era do
tipo bastardo trapezoidal-, em que um dos lados, o da amura, era tão
pequeno que a vela apresentava-se aparentemente triangular. Para além
disso,” diz Quirino da Fonseca, “tem uma verga comprida
e um mastro curto e inclinado para a ré ou para avante, conforme
o tipo de barco e a região a que pertencesse.” E prossegue
o historiador “deve-se aos indianos (com barcos conhecidos como
‘pangaios’) e árabes a navegação a
bolina no Índico, isto é, a custa da vela bastarda latina.”

ilustração do pangaio,
barco indiano que influenciou as caravelas O pangaio e sua vela latina
bastarda, a mesma das caravelas (ilustração:http://etc.usf.edu/)
O mesmo sistema foi adotado nas caravelas portuguesas
Mário Vasconcelos e Sá, em as caravelas de Bartolomeu
Dias (o real descobridor do Brasil, segundo Cortesão) diz o seguinte:
“os navios em que Bartolomeu Dias executou a façanha da
passagem do Cabo das Tormentas ou do Diabo eram embarcações
resistentes e construídas conforme ensinamentos de exploração
marítima de Diogo Cão. O casco aproximou-se da forma da
nau. O aparelho passou a ter mais um ou dois mastros. As caravelas navegavam,
em média, a 7 nós de velocidade.
“A
conquista do Atlântico começou com o aperfeiçoamento
dos veleiros. Aperfeiçoando o navio, os portugueses inventaram
a caravela de aparelho-duplo: velas quadradas para andamento do vento
traseiro, velas latinas para o vento de frente. Sem essa combinação
é natural que os portugueses nunca tivessem podido descer e subir
a eterna corrente dos alisados (ventos alísios). As embarcações
que Vasco da Gama atingiu a Índia, em 1497, eram do novo tipo:
naus São Gabriel e São Rafael.”

desenho da nau S. Rafael, de vasco da
gama, que originou as caravelas portuguesas; Nau São rafael (Ilustração:http://www.notapositiva.com/),
Outra ilustração dos navios de Gama. Azulejos
com desenhos dos navio de Vasco da Gama;
Em primeiro plano uma nua, em segundo, caravelas. Atenção
às velas bastardas latinas, como as dos Pangaios, e ainda usadas
atéhoje no Brasil e no Índico.
A frota cabralina
“No que diz respeito às naus é de aceitar-se que
as maiores, como capitânia e El-Rei, excedessem os 200 tonéis.
Sem ultrapassar no entanto o limite de 300. E as menores, como a Anunciada,
ficassem entre 100 e 200 tonéis. A média de sua arqueação
orçaria o dobro das naus de Vasco da Gama, a maior das quais
não passava de 100 tonéis, conforme Duarte Pacheco Pereira.
O que mostra a rápida evolução da marinha portuguesa
em três anos apenas, de 1497 a 1500.”Esta, a descrição
da frota de Luis Adão da Fonseca, no livro Pedro Álvares
Cabral- Uma Viagem.
ilustração
da frota de Cabral; As naus e caravelas de Cabral; Adão da Fonseca:
“A armada de Cabral, a maior até então reunida,
contava com 13 navios. As naus constituem o grosso da frota. São
ao todo dez navios. As maiores capitaneadas por Cabral e Sancho de Tovar,
aproximam-se dos 300 tonéis. As caravelas, em número de
três, seriam redondas, de cerca de 100 tonéis, com comprimento
total de cerca de 25 metros.” E a Ilustração de
caravelas portuguesas
A ilustração é de uma nau, navio posterior as caravelas.
Note
a ousadia dos lusos: cruzar o ‘Diabo’, ou Boa Esperança;
de lá atravessar o Índico e atingir as Índias,
em barcos de apenas 25 metros!!
Vida a bordo das Caravelas
Três historiadores lusos ousaram reconstruir a vida a bordo, no
livro A Caravela. São eles Eduardo Frutuoso, Paulo Guinote e
António Lopes. Depois de explicarem que a tarefa não é
fácil “pois as informações escasseiam’,
explicam que ‘aos nossos dias chegaram diversos relatos sobre
a vida e o cotidiano a bordo de naus e mais especificamente, às
da Carreira da Índia (Saiba mais sobre esta rota). A este respeito
existe abundante bibliografia resultado da literatura de viagens. Já
no caso da caravela isso assim não é, pelo que muito do
que pode ser escrito resulta de deduções e inferências.
Assim sendo, muito do que em adiante se segue tem por base esta combinação
de elementos díspares, embora não seja difícil
compreender que muitos dos aspectos da vivência a bordo das naus
em pouco seria diferente do que se passava a bordo das caravelas.”
Passageiros
e tripulantes
“O capitão era o principal responsável a bordo e
por tudo o que acontece durante a viagem. Em teoria, deveria ter conhecimentos
aprofundados dos aspectos ligados à navegação mas,
na prática, com o passar do temo e a atribuição
das capitanias por questões de outras ordem, muitos seriam os
capitães com escassos ou nulos conhecimentos de náutica.
Isso fazia com que toda a parte técnica da navegação
quotidiana ficasse em exclusivo cargo do piloto.”
O
piloto
“O piloto era o cargo hierarquicamente mais importante a seguir
ao capitão…Era fundamental a sua competência e qualificação,
pelo que a sua função era central no sucesso de uma viagem.
Para o auxiliar nas suas tarefas poderia ser ajudado por um sota-piloto.”
O
mestre e os marinheiros
“O mestre tinha a seu cargo a chefia direta dos marinheiros, grumetes,
e restante do pessoal… Completava o trio de chefias e podia ser
auxiliado por um contramestre. Os marinheiros em número variável,
desempenhavam todas as tarefas relacionadas com a navegação…seu
recrutamento nem sempre era fácil e com o tempo tornou-se o embarque
de todo o tipo de desocupados, mendigos, ou mesmo criminosos que se
encontrassem a vaguear pelas ruas de Lisboa. Embora isso viesse a se
tornar comum com o avançar do século 16, conta-se que
a ignorância de alguns nos assuntos do mar terá sido a
razão de muitos problemas, desde logo falhas de comunicação
ao nível dos termos técnicos.”
Os
grumetes
“O grupo na base da hierarquia, eram geralmente jovens aprendizes
que podiam na sua primeira ou segunda viagem, a ganhar experiência
para mais tarde tornarem-se marinheiros…a eles cabiam as funções
menos agradáveis como tratar a limpeza ou dar à bomba
(para esvaziar os porões), não era raro que recebessem
tratamento violento por parte dos superiores.”
Pagens
“Poderiam ir a bordo pagens, igualmente jovens e em número
de quatro, que faziam a chamada de pessoal que entrava em serviço,
tratavam das luzes e transmitiam recados dos oficiais. Cabia-lhes ainda
a função de proeiros, quando iam a leilão os bens
de defuntos. Era normal irem nas viagens mais longas, artífices
como tanoeiros, calafates, carpinteiros, barbeiros ou físicos
(o equivalente mais próximos a médicos) para suprir necessidades
de manutenção dos navios durante as expedições.
A bordo poderiam ainda ir um escrivão, um capelão e um
meirinho ou alcaide.”
A
comida nas caravelas
“A bordo das caravelas sempre que o tempo permitia cozinhava-se
uma refeição quente por dia. O lume era aceso no convés,
num ponto abrigado, em regra junto do castelo de popa, sendo o fogo
feito com carvão ou lenha que ardia sobre terra ou areia. Quando
o vento ou chuva impediam, a tripulação limitava-se a
fazer refeições frias.” Segundo os autores, ‘os
principais mantimentos eram constituídos por biscoitos, pela
carne ou peixe salgados, pela água e pelo vinho’. Os autores
explicam que ‘por vezes podiam ser embarcados animais vivos (galinhas,
porcos e nos navios de maior dimensão, carneiros ou mesmo vacas
nas naus), o que permitia um certo número de refeições
com carne fresca’.
Quando
era possível, pescavam, mas isso era raro durante as travessias.
E a fome, uma constante. Os autores relatam: “Em 1647 houve marinheiros
da armada da Índia que comeram mesmo uma carta náutica
acabando intoxicados pela tinta. E as disputas pelo mais pequeno pedaço
comestível tornavam-se verdadeiras lutas sem quartel. Mais raros
são os casos em que se menciona a própria antropofagia.”
Higiene
“A satisfação das necessidades fisiológicas,
que já em terra não beneficiavam de cuidadas instalações
sanitárias, em alto-mar era feita no convés., Nas caravelas
deveriam existir baldes, usados para este efeito, que eram despejados
no mar, mas nem sempre as coisas aconteciam sem percalços…
as naus da Índia eram sujas e infectas, por a maior parte da
gente não ter o cuidado de ir ao convés para satisfazer
suas necessidades, o que era uma das causas de morrer tanta gente durante
as viagens…ratos e baratas atacavam com frequência os mantimentos
e contribuíam para a propagação de diversas doenças…E
se o banho em terra era raro, o mesmo se passava com a lavagem da roupa
ao longo das viagens, tornando comuns as infestações de
piolhos, pulgas e percevejos, sobretudo nas latitudes mais úmidas
e quentes.”
E
então, pensou que fosse fácil?
FONTE:
VEJA
REPORTAGEM COMPLETA XOM FOTOS ILUSTRAÇOES PUBLICADAS NO SITE
MAR SEM FIM.
CARAVELAS:
O Brasil deve um favor a elas. Está
na hora de conhecê-las