
Independência
do Brasil - O quadro de Pedro Américo é uma metáfora
sobre o dia do Grito do Ipiranga.
A pintura, feita em 1888, chama-se Independência ou Morte e está
exposta no Museu do Ipiranga, em São Paulo.
Independência:
conheça histórias de antes e depois
do grito
Fonte: Texto e fotos, Agência
Brasileira de Notícias
O Brasil no século 19 poderia ser roteiro de uma série
de época com ingredientes típicos de ficção.
Cenas de aventura nos mares e na terra, ameaças de invasão
e violência, medo, fuga, tiros, pedras, disputas pelo poder, relações
de família, personagens controversos, cenas à beira do
rio, homens em cavalaria, enlaces entre povos, novos ajustes e um grito
de vida ou morte para chamar outras temporadas. O enredo só parece
de ficção. Pesquisadores da história do Brasil
e de Portugal constroem diferentes olhares ao contexto da Independência
do Brasil, que instiga o público há praticamente dois
séculos.
Desde o ensino fundamental, aprende-se que essa "série"
não está relacionada unicamente à celebração
do 7 de Setembro, motivo de feriado nacional. Para entender esse marco
histórico, garantem os especialistas, é preciso rever
causas, eventos antecedentes e efeitos. Enfim, “maratonar”
os eventos que precedem e sucedem a alegoria do grito do Ipiranga, registrada
pelo pintor Pedro Américo décadas depois de 1820. São
tantas reviravoltas que renderiam episódios agitadíssimos
e à moda antiga: sem telefonemas ou mensagens instantâneas
para organizar os atos entre pessoas que estão distantes. As
ordens e os documentos do Brasil Colônia atravessam os caminhos
entre metrópole e colônia por cartas depois de meses de
navio pelo Oceano Atlântico e ao sabor do vento já que
o barco vapor ainda era um experimento incapaz de enfrentar os mares.
O
tempo é um tempero a mais nesta história: a distância
entre os países criava ruídos e diminuía o peso
de decisões, decretos feitos entre as cortes no Brasil e Portugal.
Todos falavam português, mas a demora com que as informações
atravessavam os mares, em geral, de dois a três meses, retirava
as informações de contexto. Para os especialistas entrevistados
pela Agência Brasil, os episódios desta série da
vida real estão todos associados uns aos outros, enlaçados
em seus significados. Inclusive, aos sentimentos de brasilidade do público.
“Quando pensamos ter a necessidade de tratar do que aconteceu
com o Brasil há 200 anos, é porque encontramos algum laço
entre o presente e o passado. Esse vínculo se estabelece como
forma de comemorar e de lembrar. A razão para contar essa história
é para criar vínculos de pertencimento”, afirma
o historiador Deusdedith Rocha Junior.
Os
referenciais desse “pertencimento”, conforme explica Deusdedith,
devem levar em conta que o que vai ser lembrado nesse roteiro é
fruto de uma “disputa”. O conflito permanente está
na raiz de todo o processo. A disputa entre os poderosos da época
tem diferentes marcos, como a fuga da família real portuguesa
nos dias finais de novembro de 1807 para a colônia Brasil, aonde
chegaria somente em 22 de janeiro de 1808. Dom João VI, o príncipe
regente português, não viu outra saída, depois que
o país foi ameaçado de invasão pelas tropas do
imperador francês Napoleão Bonaparte, já que Portugal
não havia aderido ao bloqueio continental contra a Inglaterra.
Dom
João resolveu apostar em uma aventura e embarcou a família
inteira, incluindo a mãe, Maria, a esposa, Carlota Joaquina,
os filhos, Pedro e Miguel, e outros integrantes da corte em navios e
rumaram para o país desconhecido. Ao saber que os poderosos fugiam,
a população teria atacado os navios reais inclusive com
pedras. Para os pesquisadores, os caminhos da independência brasileira
começam a tomar forma nesse episódio inusitado.
Para a maioria dos escritores,
Revolução do Porto estimulou a Independência

Um
dos atos marcantes na história econômica brasileira foi
a abertura dos portos às nações amigas, decretada
por D. João VI,
ainda no Império, no dia 28 de janeiro de 1808. A tela de Benedito
Calixto mostra o porto de Santos em 1882
A
Independência do Brasil parece enredo de ficção
com várias reviravoltas antes e depois de 7 de setembro de 1822.
Para entender essa história, é preciso rever causas, efeitos
e eventos antecedentes e efeitos. Entre esses eventos, escritores sobre
a relação entre colônia e império destacam
a Revolução do Porto, que completou 200 anos em 24 de
agosto. A revolta liberal provocou a queda do absolutismo em Portugal
e gerou diferentes ecos nos principais personagens históricos
da regência portuguesa no Brasil. Para o pesquisador Paulo Rezzutti,
que escreveu biografias de personagens complexos como Dom Pedro e Maria
Leopoldina, é necessário quebrar estereótipos sobre
as figuras poderosas do Brasil e de Portugal na época. “É
preciso compreender que eles estão envolvidos em um processo
de ideias novas, quebra de paradigmas, como a queda do absolutismo em
1820. É um caldeirão fervilhante com esses personagens
interessantes no meio”.
Para
Rezzutti a chegada dos lusos vai gerar impactos econômicos para
o Brasil, que era antes uma espécie de “propriedade privada
de Portugal" e virou a sede do império, enquanto a metrópole
se afundava entre guerras. Os conflitos em Portugal somente diminuíram
quando os ingleses conseguem expulsar os franceses do seu território.
Assim, os recursos financeiros passam a abastecer mais o reino britânico
e os portugueses começam a sentir os mesmos efeitos da colônia.
Enquanto
Dom João decretava abertura dos portos do Brasil às nações
amigas (entende-se, particularmente, a Inglaterra), do outro lado do
oceano a história é de sufoco, com menos dinheiro circulando
com a burguesia, uma reviravolta que a elite portuguesa não imaginava.
Neste
episódio da Revolução do Porto, o Capitão
Sousa Magalhães e o Tenente Paulo Correia impedem entrada do
Coronel Grant no Regimento de Infantaria n.º 6.

A imagem em destaque retrata um episódio da Revolução
do Porto. Nela, o Capitão Sousa Magalhães e o Tenente
Paulo Correia impedem entrada do Coronel Grant no Regimento de Infantaria
n.º 6. A pintura foi feita em 1917 por Roque Gameiro e publicada
em "Retratos da História de Portugal". Domínio
público.
“O
que é essa revolta do Porto? Esses comerciantes se revoltam porque
Portugal está à míngua. Pouco dinheiro circulando.
Caem impostos. Como o Brasil abriu os portos para Inglaterra, a elite
comercial não atravessa mais as negociações com
a colônia”, avalia o biógrafo. O
impacto também chegou aos tribunais de Lisboa e demais instituições
que antes lidavam, na metrópole, com as burocracias da colônia.
Afinal, o aparato jurídico havia mudado de terra junto a sede.
“Eles sentem na pele o que o Brasil passou por 300 anos”.
A
Revolução do Porto espalha-se por Portugal inteiro e acaba,
na prática, com o regime absolutista. Ao serem criadas as cortes
constitucionais, o rei perde o poder. A elite portuguesa no Brasil,
que passava a experimentar uma liberdade diferente nos últimos
12 anos da chegada da família real, sente a mudança dos
ventos.
200
anos de Revolução do Porto
Para
o professor José Manuel Lopes Cordeiro, da Universidade do Minho,
e pesquisador do período, a Revolta do Porto pode ser caracterizada
como um “pronunciamento militar”, e não como uma
revolução popular.
“Os militares saem do quartel e são lidas as proclamações
para o novo regime. Raízes do sistema constitucional que vivemos
em Portugal datam desse período”, disse à Agência
Brasil em chamada de vídeo. O
assunto foi minuciosamente investigado pelo escritor portuense em obra
lançada no mês passado em mais de 500 páginas. O
livro 1820: Revolução Liberal do Porto foi escrito durante
15 meses com buscas a documentos inéditos sobre o episódio.
“Procuramos dar uma visão abrangente do que aconteceu naquele
ano, porque o pós 24 de agosto (de 1820) foi desprezado ou nem
sequer abordado pela historiografia".
Uma
das descobertas trazidas à luz da história por José
Manuel foi o Livro de Vereações (Livro de atas), que contém
a posse da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino. “Ou
seja, a fundação do regime liberal do país aconteceu
na Câmara do Porto, em 24 de agosto de 1820. Sempre me surpreendeu
porque é que esse livro de atas nunca foi mostrado e nem sequer
é referido pelos historiadores”.
O Livro de Vereações, que continha as atas das decisões
liberais, foi rasurado a mando de elites absolutistas. Os registros
haviam sido replicados pela imprensa da época e essas informações
agora estão expostas, de forma inédita, na Casa do Infante,
em Porto. Foto de António Alves/Museu da Cidade do Porto.
Por causa da passagem dos 200 anos do evento, o assunto tem atraído
mais atenção da sociedade portuguesa. O pesquisador é
o comissário responsável pela exposição
sobre o tema no Museu Casa do Infante na cidade do Porto. A mostra começou
em fevereiro, foi interrompida por três meses devido ao Covid-19,
e está em cartaz até janeiro de 2021. Para o historiador,
o furor absolutista está marcado para sempre no próprio
livro de ata. Em reação contra os liberais naquele país,
o livro de vereações foi rasurado com tinta corrosiva
em uma tentativa de apagar os registros em uma reviravolta de lideranças
absolutistas. Ao
mesmo tempo em que ocorrem as transformações liberais
em Portugal, José Manuel Cordeiro considera que a sociedade brasileira
encontra-se em uma “efervescência” cultural, política
e ideológica", além de já possuir uma infraestrutura
de Estado. Os revoltosos na Europa reivindicam que Dom João retorne
à metrópole. Em fevereiro de 1821, uma manifestação
no Rio de Janeiro exige que o rei jure obediência à Constituição.
Os
acontecimentos de 26 de fevereiro de 1821 traduzem o momento. Não
se sabia qual seria a reação de Dom João VI. Foi
a contragosto, segundo os historiadores, que o rei volta para Portugal
intimado pela elite do seu país. Inclusive, ele chegou a anunciar
que mandaria o filho Pedro para “ouvir as queixas” e tranquilizar
os revoltosos. Nada feito. Quem retornou a Portugal foi o próprio
Dom João IV. Antes
de zarpar, ele orientou o filho sobre a instabilidade entre coroa e
colônia. Ao chegar em Portugal, João descobriu, da pior
forma, que não era mais ele quem dava as cartas: precisava de
autorizações para descer do navio e tomar decisões.
Na
opinião da professora Teresa Marques, da Universidade de Brasília,
a Revolta do Porto é um movimento que mostra o ressentimento
e o mal-estar da elite portuguesa.
“O reino havia se tornado secundário nos domínios
portugueses. Tanto que os portugueses ficaram incomodados com a manutenção
de Pedro no Brasil".
Os
papéis de Dom Pedro I e Leopoldina na Independência do
Brasil

A
imagem em destaque é um recorte de Dom Pedro I e Dona Leopoldina
sobre a pintura Pintura de Julien Palliere (óleo sobre tela,
1826). A ocasião retratada mostra os dois visitando a Casa Dos
Expostos, atualmente o orfanato Romão Duarte no Flamengo (RJ).
A
Independência do Brasil está marcada pela complexidade
dos atores políticos como Dom Pedro I e Maria Leopoldina. “O
que mais me atrai nessas histórias são esses personagens
envolvidos nesse processo da Independência. Poderia ter acontecido
tudo ali”, confessa Paulo Rezzutti, escritor de biografias do
período colonial. Pedro chegou criança (7 anos de idade)
à nova terra. “Depois de 12 anos no país, ele já
era mais brasileiro do que português”, diz Rezzutti. A esposa,
Maria Leopoldina (da Áustria), chegou ao Brasil em 1817 e foi
só então que conheceu o marido (em um casamento acordado
por procuração). Ela, aliás, revelou-se uma articuladora
hábil e se liga a movimentos autonomistas, que desejavam que
a situação permanecesse como estava. Uma personagem determinante
para a mudança da rota da história. “A
situação se acirra. Se por um lado, Pedro está
preocupado com os acontecimentos em Portugal, Leopoldina estava ligada
à manutenção do trono no Brasil. Pedro considerava
ficar desde que pudesse nomear os próprios ministros. Isso acontece
no dia 9 de janeiro de 1822, o Dia do Fico”, conta o biógrafo,
que já escreveu livros sobre Dom Pedro I, Leopoldina, Marquesa
de Santos, Dom Pedro II, entre outros.
A
decisão de Dom Pedro I ficar no Brasil cai como uma bomba em
Portugal. “As Cortes revogam tudo o que Dom Pedro faz. Mas o navio
com essa comunicação só chega em 28 agosto de 1822”,
explica Rezzutti. Depois
de tanto tempo, as ordens de Lisboa determinavam ainda que Pedro e família
deviam voltar para a metrópole imediatamente, e os auxiliares,
como José Bonifácio e Clemente Pereira, que participaram
do aconselhamento deviam ser demitidos, presos e levados para Lisboa.
A reação no Brasil desencadeia uma sucessão de
acontecimentos com as características da velocidade da época.
“Até reunir o conselho de ministros, foi 2 de setembro.
Os auxiliares levam a Dom Pedro I a ideia de declarar a independência.
José Bonifácio manda oficial de chancelaria encontrar
Dom Pedro urgentemente. Isso acontece em 7 de Setembro, no Ipiranga,
em São Paulo. Até Portugal saber o que estava acontecendo,
também demora”, destaca Rezzutti.
Princesa
Maria Leopoldina, a articuladora
Um
detalhe ressaltado pelo biógrafo de Maria Leopoldina é
que ela tem participação determinante no conselho de ministros
em relação à declaração formal da
Independência. “Ela era articuladora hábil. Tinha
conhecimento de política e funcionou como uma mediadora importante
nos bastidores do palácio para encontrar uma solução
adequada.” Após
a independência, a situação continuou efervescente.
A professora de história da Universidade de Brasília (UnB)
Teresa Marques destaca que a decisão pela independência
também não era consensual. “De fato, existem protestos
no Nordeste do país que se levantam contra a Corte. Em Pernambuco,
em 1817 e em 1824, há manifestações contra a Constituição
imposta”. Ela
explica que a forma de lidar com as províncias era conturbada.
“As pessoas comuns não entendiam direito o que estava acontecendo.
Nem sempre Dom Pedro se aconselhava com mentes mais moderadas. Quem
dera ele ouvisse mais a esposa”. As
províncias reagiram a ter que obedecer ao Rio de Janeiro e não
mais a Portugal. Pelo caminho da diplomacia, a independência só
foi reconhecida pela Europa em 1825 mediante o pagamento de duas milhões
de libras esterlinas para Portugal.
Independência
x Brasilidade
O
conceito de brasilidade acontece em não menos do que duas décadas
depois, segundo os pesquisadores entrevistados. Teresa Marques destaca
o papel da imprensa que, a par das dificuldades de dar conta de explicar
o tempo presente, traz discussões relevantes para os jornais.
Para
o historiador Deusdedith Rocha Junior, o 7 de Setembro, em boa parte
pelo império português, não era tratado de forma
importante. “Quando destacamos a independência como fruto
da ação determinada de uma pessoa que é, no caso
o imperador, abafam-se os interesses dos poderosos e também a
ideia de que essas elites e Dom Pedro tomaram todo cuidado para que
a população não participasse disso.” Ele
cita que as manifestações na Bahia e no Pará foram
tratadas com violência policial, incluindo centenas de mortes.
“Não
é uma história pacífica. Isso tudo cai no esquecimento
para confirmar uma ideia de mansidão do brasileiro.” Os
pesquisadores avaliam que não é possível entender
aquele período apenas por uma ideia de “grito”, como
se fosse o último episódio. A
história barulhenta, cheia de nuances, inclusive de silêncios,
ainda vai ecoar pelos séculos.